domingo, 25 de março de 2012

Espetinho de Ferro


Parado ali diante de si, avistava um amontoado de pedaços de ferro jogados descuidadosamente em um canto qualquer do terreiro. Olhou e pensou - porque não construir um espetinho de ferro... Ele será útil, poderá dourar as carnes nos longos churrasco de domingo, num ambiente de alegria, gargalhadas, onde o amor permeia sorrateiramente. Ele poderá ouvir e assistir às conversas, as maledicências corriqueiras, as trocas de afetos, as risadas, discussões e brigas, abraços, gargalhadas e beijos, e fará o seu serviço amorosamente em todos os encontros churrasqueiros, pensava ele. Na sua mente a cena se formava.

Assim foi, o velho ferreiro, começou a laboriosamente confeccionar vários e vários espetinhos. Mas, o primeiro deles, ele o destacou de alguma forma, a sua marca pessoal, no retorço do término. À medida que ia construindo os espetinhos, a sua tristeza ia se aquietando, era preenchida pela sensação de completude. E por ai foi. Após vários e vários dias os espetinhos estavam prontos. Agora era necessário construir uma abóboda onde seriam colocadas as brasas em fogo, com um carvão escolhido de transformação ascendente, onde os alimentos carnes e frutas, os mais diversos tipos, conforme o apetite dos participantes, fossem transformados. Ele pacientemente aceitaria. Os alimentos seriam transformados em deliciosos churrascos tostados, mais assados, mais crus, mais doces, com mel, adocicados, azedos, ácidos, com frutas, nas mais intrigantes e belas criações, alimentando o paladar de todos.

E assim ele o fez. Confeccionou calmante o seu instrumento de vida. Passeou, ofereceu seu serviço, degrau por degrau, um dia após o outro.

O mesmo, ao decorrer do tempo, foi acatado por um grande fabricante que o divulgou e o popularizou através dos tempos, para servir nas churrascadas da vida, nos mais recônditos e variáveis lugares deste planeta. Lá estava o espetinho de ferro cumprindo a sua função, sobre os fortes calores, das chamas em brasas nos corações humanos. Ele calmante se disponibilizava em receber os mais variadas e belas escolhas dos alimentos que se achegavam, inimagináveis combinações. Sorria a cada suspiro, reclamação e gemido, dos que saboreavam as carnes lambuzadas de mel e fel em bocas recheadas de saliva e prazer. Por vezes e vezes também pairava no ar e sentia. Assim foi ele construindo e seguindo a sua designação ao longo da sua vida útil.

Um belo dia de chuva, numa verde campina florida, de trovoada onde os raios desenhavam no ar, já desgastado pelas chamas e calor, partiu-se ao meio, foi colocado novamente num canto qualquer.

Uma criança, brincando de esconde-esconde, que por ali passava, o viu. Pegou em pedaços, olhou, o recolheu e disse: - belo espetinho de ferro, velhinho, desgastado pelo tempo, mas eu o levarei, o derreterei no calor das chamas, o esfriarei e o transformarei em uma bola, sim numa bola de ferro, que percorrerá o campo das brincadeiras infantis, fará parte das alegrias das crianças, onde ele também poderá fazer parte dos sorrisos e da leveza, da maldade e perversidades das mesmas, ao brincar alegremente no campinho aberto e ilimitado das imaginações infantis, por toda e toda a eternidade a fim.

Socorro Prado

segunda-feira, 19 de março de 2012

Por onde andará meu Professor...


Hoje procuro alguém que me faça recordar do meu velho professor de Francês; chamava-se Aurélio. Aquele que me passava os ideais de amor e dedicação aos estudos – o meu mestre. Que me ensinou que estudar é abrir os caminhos do sucesso e da auto-realização. Que através da leitura seria possível percorrer uma trajetória que me levaria a conhecer um mundo até então nunca por mim desbravado, um mundo meu, rico de colorido e aventuras. Que devolvia a beleza e a esperança pela vida. Que imprimia propostas de união, respeito e amor aos nossos colegas. Que transmitia o carinho e a tolerância para com nossos pais, e principalmente a atenção aos seus cabelos brancos – marcas da sabedoria e de experiências tão ricas. Por onde andará o meu professor que me ensinou a acreditar no mundo, na bondade das pessoas, na fidelidade, na possibilidade da troca, na lealdade, no amor e na ética. Que contagiava minha mente com viagens em volta do mundo, e enriquecia a minha rotina com textos de jornais e histórias escritas de próprio punho, incentivando-me a buscar o conhecimento como alimento da alma. Que me fez senhora da minha vida, que me ensinou a buscar e acreditar nos meus sonhos e na possibilidade de realizá-los. Passou-me isto não através dos livros, mas do seu próprio exemplo, na eloquência de suas palavras e na emoção impressa em sua voz quando lecionava e dividia a sua opinião cheia de entusiasmo e respeito pela vida. Por onde andará o meu professor que me ensinou a ter um ideal de um mundo justo, sem fronteiras, onde as diferenças sociais e econômicas, raciais e religiosas nada – ou quase nada – representavam diante da riqueza das descobertas. Onde estará o meu ídolo, que fez com que eu acreditasse que seria possível trilhar um caminho de dedicação ao estudo, da valorização da leitura, da arte, da música e do teatro. Sabe, por vezes imagino: Que pena! Talvez tenha ele se perdido neste emaranhado de apelos atuais, nas dificuldades planetárias, nestes novos desafios. Contudo jamais morrerá. Para mim estará sempre vivo e presente nas minhas melhores recordações da juventude. Mas o quero de volta, quero vê-lo em outros mestres, para que meus filhos e netos, jovens e adolescentes possam também conhecê-lo, e assim aprendam com ele que, independentemente de qualquer condição, é possível lutar e realizar as nossas metas, e que o conhecimento nos levará inevitavelmente a isso. Que dele possam aprender a valorizar o estudo e o amor, e que sejam orientados a respeitar o ambiente escolar, seus mestres e seus livros, não desistindo jamais de seguir adiante, ainda que tudo conspire contra eles. Para que devolva os valores perdidos e resgate a esperança de que ainda é possível viver, sobreviver e ser feliz, apesar de este mundo apresentar-se tão conturbado de violência, solidão e doenças. Basta apenas que acreditemos e tenhamos em nossas lembranças um professor como este, que nos ensina que a vida vale a pena ser vivida sempre, apesar das adversidades.
Socorro Prado

domingo, 11 de março de 2012

Onde está Deus?


Esta é uma pergunta que sempre me fiz. Quem é este personagem e onde se encontra? Assim me refiro porque a minha mente pouca evoluída ainda necessita de algo concreto para nominar. Busquei na religião, nas leituras, em todos os caminhos que tive acesso e que se achegaram a mim. A explicação de que era um ser onisciente, onipotente, onipresente..., por vezes, quando criança invadia-me; sentia-me vigiada continuamente pelo este ser observador que ficava o tempo todo, onde estivesse, olhando, e sabendo de tudo..., e inúmeras vezes, perseguida. Fui crescendo e continuei caminhando, o modo de caminhar foi mudando, mas o caminho era o mesmo – veja como também eu o perseguia! As definições da religião não deram respostas que me satisfizessem; a Filosofia, Sociologia e a Psicologia, também não, tampouco outra ciência; mas em compensação, apresentavam alternativas para que pudesse continuar debruçando-me nas análises, para que ampliasse e vivenciasse o processo continuo de busca.

Até que, finalmente, o percebo, na plumagem multicolorida dos pássaros, na água que escorre sem molhá-los durante a chuva, na flor se entreabrindo- no mágico momento em que ela se abre por inteira, no perfume que exala das plantas, na suavidade da música, nas artes, na brisa de tardinha, no orvalho, no nascimento, no barulho das ondas, nas pessoas humanas indistintamente de classe, de luxo, de cor - livre de qualquer padrão estabelecido por nós - numa criança quando aprende a andar, na mãe que embala e canta, nas brincadeiras infantis, nos risos, na construção do joão de barro, na borboleta que voa em círculo, no bando de aves desenhando o ar, na ave que espalita os dentes do jacaré, no beija-flor parado no ar, no leão quando ataca à presa, na aranha que tecesse, no amigo que se condói que ama que ajuda que tem compaixão. Está presente, inexoravelmente, na sua mais bela criação que é o Ser Humano, indiscutivelmente a mais bela de todas, PORQUE DEUS É BELEZA, e ela esta presente em tudo.

Mas, ainda assim, a percepção evolui, poderei me surpreender diante de novas possibilidades e incertezas, construir novas visões, pois hoje o percebo através da minha própria realidade; não se tem a possibilidade de se chegar a um limite consciente, ponderável; os véus continuaram, até que eu alcance novos vôos. E assim, permaneço neste intrigante caminho, de inquietação inalterada, em busca do desconhecido refletido em mim mesma.

Socorro Prado


sábado, 10 de março de 2012

O badalar da Ave-Maria



Frente à imensidão do cair da tarde, a Baia de Todos os Santos se descortinava em um cenário nunca repetitivo aos olhares embebecidos dos que se debruçavam a mergulhar sobre si mesmo, numa conversa inadiável diante daquela contemplação. O mar de cor índigo, em estado de completo silêncio, imóvel, se propunha a ouvir o comunicar dos corações dos que ali se rendia ante sua beleza inusitada de verão. A densa vegetação praiana de um verde musgo circundava a paisagem, ornava num ritual de festa a comemorar mais um final de dia; o pôr do sol que decaia lentamente por entre as nuvens, ao tocar o horizonte, anunciava o término de mais um dia nossa existência terrena. A natureza aquietava-se numa integração harmoniosa e silenciosa.

Casais a bebericar gelados refrescos, risos e conversas, celulares, bate-papos amigos e troca de amores, todos a usufruir aquele espetáculo natural e divino, onde a branca igrejinha de Sto. Antônio, no alto do morro, consentia com a sua presença paroquial a confirmação dos encontros amorosos em juras de amor eternos. Todos se sentiam pequeninos diante da natureza que se apresentava gratuita e humildemente a todos que ali se achegavam.

Seis horas! Os corações se aquietam, respiração pausada, ouvidos atentos e conversas cerceadas - todos escutam calma e amorosamente o badalar rítmico dos sinos da catedral a tocar a ave-maria, numa beleza inconfundível de sons combinados, aquietando nossa alma e fazendo-nos lembrar da existência de Deus!

Momentos em que se comemora a vida, e que emocionados nos dirigimos à divindade em oração de agradecimento pelos olhos que nos permite vê tamanha beleza, pelos nossos pés que nos levaram até ali, pelas nossas mãos que tocam e acariciam, pelo alimento que deliciamos em comunhão, pelos ouvidos que nos permite escutar a vibração dos sons, a sensibilidade de perceber o que nos cerca, o perfume que nos envolve e o sentir e vibrar do nosso corpo e psiquismo - esta maravilhosa engenhosidade até então, tão desconhecida e muito ainda, a ser explorada pelos humanos.

É a vida que pulsa, que relembra o até então vivenciamos, recheada de experiências que nos prepararam a escalar os degraus do nosso cotidiano.

Nada a dizer, diante do que é visto, o estado de mudez é a própria oração, tamanha a nossa insignificância e impotência ante a Criação. Só nos resta agradecer pela vida e pela a bela e infinita bondade do Criador que nos proporciona tamanho presente, ao abrir clareiras diárias na passagem onde floresce a reflexão, o crescimento e o caminho.

Socorro Prado

sexta-feira, 9 de março de 2012

Cinderela no Sambódromo


Seus olhos verdes, vivos, brilhantes e arregalados mantinham-se fixos, imóveis diante da beleza que escorria ritmicamente ao som da bateria da escola de samba beija-flor. O coração batia acelerado aos compassos dos tambores e instrumentos que entoavam uma canção que mais pareciam uma oração em celebração à vida. Nos seus pensamentos desfilava como em câmara lenta as passagens de sua vida, analogamente como as alas da escola de samba. As cores, luzes, brilho, alegorias, manejos e danças de rara beleza e a criatividade lhe possibilitava dar um novo colorido a sua história, enriquecida agora de sons e adereços, pela magia do entoar do batuque da bateria acompanhado ao canto das pessoas. A cada escola que plainava na avenida, mais um episódio de sua vida derretia-se em lembranças e recordações, um passado e rico filme que ela adornava com a sua recriação e fantasia, como se a criar para cada uma delas um novo enredo enxertado naquela multidão a bailar e cantar como uma grande opera oportuna.

Lembrava-se de suas vivencias interioranas, do seu teatro em cima do balcão da torrefação, em cortinas de lençol, presas em fios de arame, fantasias de palhas e cetins floridos, adornados com flores do campo e perfumes lavanda. Das danças do circo, do tablado, que tantas vezes a representava em suas brincadeiras infantis, da mulher rumbeira, que trazia sob as nádegas um enorme babado que se arrastava ao chão comparado ao movimento dos repteis, na sua flexibilidade e leveza. Dos desfiles de sete de setembro, dia da bandeira, da baliza que bailava ao som da bandinha; do circo de Gozobinha que a deixa entusiasmada frente ao trapézio, fazendo-a voar; da alvorada, que a bandinha colegial, entoava na madrugada anunciando um dia festa; do teatro da escola onde assistia às peças ali representadas pelos estudantes e dos seus ensaios dominicais. Na sua mente também ocorrida um grande desfile, o seu espetáculo interior, calmamente revivenciado.

Seus pensamentos volitavam, suas recordações revividas! Quem poderia previr que um dia aquela menina pudesse estar diante de um dos maiores espetáculos da Terra, onde a criatividade emociona, contagia, o calor do povo inebria e a musica aquece os corações adormecidos pelas dores antigas, mas que revivem as lembranças de alegria e amor pela vida vivida. Que fantástico é poder ver e sentir a capacidade criativa do ser humano. É indiscutivelmente, notadamente ilimitada!!! Imprevisível e surpreendente. A cada escola que se desenrolava a sua frente, era como viver um grande espetáculo, onde o entusiasmo se fazia presente em todas as cenas, numa loucura embriagante. Assim, era transportada a lugares até então nunca visitados por nós, há um mundo de fantasia, ficção e cor, imersos no absurdo!

Que grande revelação!!! Os contos de fadas existem..., basta que acredite neles, reinvente e viva-os... Se presenteie!!!

Socorro Prado