domingo, 6 de abril de 2014

RESPOSTA




Cara Amiga,

Em sua última carta dizia-me que tinha se relacionado com um rapaz quando tinha 31 anos, que foi sua primeira experiência amorosa e sexual, e que até hoje aos 63 anos, ainda o amava e perguntava-me: é possível tamanha paixão transformar-se em amor e guardar por tanto tempo tamanho vigor?
Afirmo-lhe que sim, desde que esta relação fosse compartilhada a dois, que vocês tivessem o mesmo grau de investimento nesse relacionamento e que juntos levassem uma vida ativa e nova, aventurosa e interessante, que descobrissem coisas diferentes e que lutassem juntos diante todas as dificuldades exteriores – ombro a ombro por um projeto comum. Viveriam os obstáculos e criariam solidariedade numa ação comum, onde juntos quereriam aquilo que interessava a cada um e a ambos. É como, elaborar novos itinerários, pois repetir passos idênticos, experiências já provadas, dificuldades conhecidas, já imaginadas e vividas seria totalmente destrutivo a paixão, seria saborear um alimento sem tempero. Logo, ter novas experiências juntos é a chave do enamoramento, uma eterna viagem de núpcias.
Sabe amiga, estar enamorada é uma exploração possível, a pessoa pela qual nos envolvemos constitui para nós uma modalidade com que modificamos radicalmente a nossa experiência cotidiana. Enamorados, nos sentimos mais vivos, capazes de construir coisas novas, fantasiosas, faz-nos entrever uma vida rica, mais alegre e fascinante, cheia de emoções intensas, de coisas maravilhosas, de descobertas constantes e até mesmo de riscos. Afinal Clarice Lispector em sua crônica chamada “Mude” já afirmava: “repito por pura alegria de viver: que a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!”.
Contudo, o nosso cotidiano surge pouco a pouco como uma renúncia a tudo isso, para transcendê-lo é necessário à reafirmação do imaginário, da fantasia sobre a realidade vivenciada. Mas não esqueça é uma viagem em conjunto, que requer que a iniciativa seja de ambas as partes, pois exigem de nós o enfrentamento de duras penas, descobertas e confrontos, numa continua reinterpretação do mundo e reexame do passado. Há quem encare como luta, outros como poesia, ou simplesmente como a capacidade de se maravilharem consigo mesmos, procurando sem cessar, não o que dá segurança ou o que já se conhece, mas o desafio, a criação e a beleza. Todavia, a viagem exterior é apenas a ocasião, o instrumento para uma longa e continua viagem interior, assim como, a viagem ao interior é um estímulo para a viagem exterior.
A vida, mui amiga querida, cria o encontro, os projetos, as provas, as ocasiões. Precisamos nos mover nessa correnteza com uma pequena canoa em meio à tempestade, embora não sejamos nós que fazemos as ondas e nem a modificamos. Podemos atravessar o mar, com alegria ou fadiga, ou com ambas, e chegar à margem, ou também não chegar. Quem sabe, mais do que uma arte do amor ou do apaixonamento, seja necessário sabermos que se trata de fazermos escolhas, cada vez mais e mais conscientes da nossa humanidade, o que nos torna humildes e menos onipotentes ante a vida.

Beijos, saudades,

Socorro do Prado

quarta-feira, 10 de julho de 2013


Miragem

Vinha eu, fazendo meu percurso diário pelas ruas da velha cidade de Barra de Pojuca. Caminhava lentamente, pois a idade já não me permitia passos tão acelerados, e carregava no peito toda a tristeza de um velho solitário. Digo “solitário” porque, se fosse sozinho, estaria bem acompanhado.
Naquele, dia principalmente, meus pés arrastavam-se pelo chão vagarosamente, e o peso do meu corpo redobrava... O sol estava causticante, mas a brisa parecia me acariciar. Em frente à praça da igreja, a principal e mais movimentada daquele lugar, avistei uma menina com vestes rasgadas e cabelos em desalinho, que sentada na esquina do beco, embalava sua boneca e cantava uma cantiga de ninar que mais parecia um choro que saia das profundezes de sua alma.
Aproximei-me, calmamente, e disse-lhe:
- Está sozinha?
Ela nada respondia. Indaguei novamente:
- Você está perdida? Onde estão seus pais?
E nada. Continuava a cantar, fixando o olhar na encardida boneca de pano. Permanecia distante e impassível. Não resisti. Veio à vontade de tocá-la, envolvê-la em meus braços. Por um instante, hesitei, sucumbi ao medo que tomara meu corpo. Por fim, decidi sentar-me junto a ela. Com muita dificuldade, abaixei-me na calçada para vê-la mais de perto. Havia sumido!


Socorro do Prado

domingo, 18 de novembro de 2012

SAUDADES DESTE TEMPO...

Fico a relembrar por muitas vezes e sinto saudades das pessoas que durante anos trabalhavam em nossas casas durante tantos anos. Da amizade, lealdade e respeito que existiam nesta convivência. Seres que dedicavam anos de suas vidas em nossas companhias que cuidavam de nós como, ou melhor, que nossas verdadeiras mães, com carinho e extremado amor. Questiono-me às vezes, que mundo moderno é este onde as relações são tão “liquidas”, sem envolvimento e compromisso, onde disponibilidade e tolerância não existem.
 
Lembro-me da minha babá que me punha na rede a cantarolar músicas jamais esquecidas por mim, a pentear meu enorme cabelo cheios de cachos todas as manhãs, calma e amorosamente, com uma paciência e ternura inesquecíveis. Das guloseimas, biscoitos de nata e maravilha coberto em alvo guardanapo servido com suco de jabuticaba, nas tardes ensolaradas e escaldantes do verão nordestino; quanta delicadeza imprimia aquela mulher em gestos suaves e delicados, que me fez acreditar em um mundo possível de trocas amorosas.
 Acho que estou fora de moda, pois acredito que a perda deixa um vazio, e quando crescemos e nos tornamos adultos são as recordações, as saudades destas pessoas que as tornam encantadas, pois são elas que nos fornecem o colorido das nossas florescências infantis, acalmam e enriquecem nossas vidas. Podermos ir lá sempre que quisermos, neste mundo particular e maravilhoso.  As histórias que vivenciamos enriquecem a vida e quando estamos tristes e angustiados podemos recorrer a estes momentos, porquanto eles têm o poder de modificar o dia a dia, de transformar as nossas angustias e medos em canções e filmes a relembrar. Só assim, os desafios das nossas vidas perdem o poder de nos incomodar tanto, ficam mais amenos e fáceis de suportar. E nossas crianças que moram dentro de nós passarão a possuir um rico material para sobreviver neste mundão de meu Deus, principalmente, aquelas em que o medo da solidão se faz presente.


Socorro do Prado






sábado, 3 de novembro de 2012

CRIANÇA CIRCENSE




Acompanhada fisicamente de bela jovem chamada Miúda, Gata Elétrica animadamente se arrumava para empreender a sua jornada circense. Seu coração batia descompassadamente diante a possibilidade de rever as aventuras até então guardadas na sua imaginação infantil. Durante algumas décadas decorridas ao longo dos dias que se arrastavam por vezes vagarosamente ou quem sabe, velozmente, mantinha numa caixa de laço de fita colorido as fantasias inimagináveis por ela vivida na sua cidade natal, onde percorria os arredores, cercada de uma vegetação seca e tórrida, do sol causticante das tardes e noitinhas dos dias de outono.

O circo forrado de uma lona plástica azul e amarela, já gasta pelo tempo, conversava as impressões primeiras com sua bandeirinha no centro a balançar pelo vento nos finais do dia.  Logo na entrada principal, o circo reluzia brilhante, com luzes de cores variadas, pisca-piscas e palhaços com alto falantes a clamar pelo povo - faziam os anúncios das atrações diárias - mulher no arame, palhaços de perna de pau, rumbeiras espanholas, homens dos pratos, mulher sapo e o mais atraente de tudo, o trapézio - o voo mortal, onde o trapezista se lançava daquele balanço de olhos vendados, na entrega e confiança total ao outro, que o segurava do lado de lá, era uma travessia às escuras! A música acompanhava o movimento, suspense, respiração pausada, lembrava a dos filmes de Alfred Hitchcock. Um erro fatal, sem proteção, estava fadado à tragédia, mas mesmo assim entre risos e inseguranças, realizava-se a concretização real das fantasias.  Um ambiente descrito só nos contos de fadas! Tecidos luminosos, acolchoados, macios, de sedas árabes, em combinações floridas, com músicas alegres e saltitantes, palhaços, vendedores de pipocas, sorvetes e alfenas, numa zoeira de zabumbas, e assim eram os rostos do que ali se encontravam, reluzia o mistério inusitado dos castelos medievais.

Seus pés encontravam-se a um metro acima do chão, volitava diante do inesperado ambiente circense. Sentada em frente ao picadeiro, mantinha seus olhos fixos e a respiração compassada presa a cada cena que se seguia associada as suas experiências anteriores. Rever o palhaço, dar risadas infantis, saborear o algodão doce, libertava-a das suas prisões infantis e possibilitavam o ressurgimento da sua criança presa e amedrontada diante os desafios que a vida se lhe impusera. O trapézio era a própria liberdade, a soltura dos movimentos leves e confiantes que a trapezista imprimia no risco e coragem de voar causava aos expectadores infantis, a possibilidade de avançar, confiar e recriar. As mágicas traziam de volta o mistério, a magia e o inexplicável, a própria impotência diante de fatos da vida.

Ao final do espetáculo segurando seu chinelinho entre as mãos, retornava sonolenta para casa, mas levava o doce sabor entre os lábios e a certeza por dias melhores em seu coração. Ia dormir, quem sabe sonhando poderia reviver os momentos vividos na experiência circense, já que para Gata Elétrica era tão raro estes momentos no seu cotidiano. Mas apesar de tudo conservava a esperança como o motor de impulsionamento da vida, isto a fazia sorrir, imaginar e sonhar! E sua vida ia se permeando de matizes multicoloridas e facetas ornamentadas de desafios desenhadas ao nascer de cada dia, imprimindo-lhe a certeza que a vida vale a pena sempre ser vivida como a maior dádiva que nos é concedida pelo Criador.

Socorro do Prado

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

E A MORTE...





Em virtude de ser um assunto muito pouco abordado nas academias, evitado nas conversas informais e ser tão importante para a reflexão do ser humano - quem sabe, porque é ainda muito velado por todos, pois o medo da morte nada mais é do que o medo do novo, do desconhecido e do inesperado, em última instância o próprio medo da vida, resolvi refletir um pouco sobre ele.
A leitura das obras sobre a morte tratada em  Sobre o Viver e o Morrer  de Deborah Duda,  A morte à luz da Psicologia de Aniela Jaffé,  Memórias Sonhos e Reflexões  de Jung , Sobre a Morte e o Morre  de Elisabeth Kübler-Ross, O Problema do ser, do destino e da dor  de Leon Denis  e  A morte sem medo e sem culpa de Trigueirinho, nos propicia um novo sentir e compreender sobre este tema tão temido por nós.  Revoluciona a nossa mente consciente nos privilegiando com ensinamentos e conclusões belíssimas, que nos conduz a um patamar de novos entendimentos diante da vida.
É bela e consoladora a certeza da infinitude da vida; e ela pode ser vivida de uma forma mais otimista e confiante. Esta é, pois, uma reforma de um arcabouço teórico maleável e incognoscível. A consciência mais ampliada nos colocará em lugar de um grande rio, aberto às grandes e pequenas correntezas em busca de um caminho de novos campos de saberes e descobertas.
Quando pudermos, como observadores, fazer uma analogia, admirar o crepúsculo, onde o anoitecer nos acomete, nos toma de uma infinita tristeza, pensamos no novo dia que nascerá em breve; nos consolamos com o pensamento das florescências futuras, assim deveria ser com o medo da morte, um ato que de fato não é o fim. 
Logo, cada uma das nossas existências será permeada de experiências, que irão desaparecer ao longo do curso, para dar lugar a novas vidas no Espaço, em mundos mais perfeitos que os vividos anteriormente. O morrer torna-se, pois, a porta de entrada de um mundo mais rico de impressões e sensações.
Por isso, precisamos encarar a morte face a face e nos prepararmos para este acontecimento natural e necessário para o curso de nossas vidas, pois ela representa um papel importante na nossa evolução.
Este pensamento contribui para que tenhamos confiança em outra vida, e isso nos estimulará aos nossos esforços, para tornar nossas atitudes mais fecundas. Dissipa o nosso medo pelo mundo desconhecido e retira de nós a cruel incerteza e o temor que a ela atribuem.

Mesmo presa eu me mexo, pois imagino que os movimentos acabam por me libertar
SOCORRO DO PRADO




terça-feira, 4 de setembro de 2012

RITUAL



À tardinha, a procissão seguia vagorasamente. Todos se mantinham calados e concentrados, conversavam  consigo mesmos numa oração entoada pelo entardecer e pelos sons melancólicos e frios do vento entrecortante. Os pássaros em revoada sacudiam as asas anunciando o recolher. Em fila, um atrás do outro, seguiam calmamente morro acima; carregavam em suas mãos uma lanterninha, das antigas, feita de papel de seda, sustentada em varinhas de madeira, com uma vela no centro, a iluminar o caminho. Lembrava-me as procissões do dia vinte sete, que mensalmente, eu assistia e participava em minha terra natal - era em homenagem a Nossa Senhora das Graças.

Hoje quarenta anos depois, com os cabelos em fios ligeiramente embranquecidos e pele levemente enrugadinha, revivo lenta e deliciosamente as minhas lembranças de infância interiorana. Contudo, ainda conservo um leve sorriso nos lábios entreabertos a solver as recordações e fantasias vividas naquele lugar e a esperança por dias melhores no meu coração. 

Os participantes estavam indiscutivelmente unidos e conectados num só objetivo: superar o desafio da subida ao morro do Cristal em voltas que se arrastam em espiral,  a fim de chegar ao cume, onde se encontrava um belo campanário a entoar as batidas do pôr do sol, mesclados das cores do arco-íris de um dia além ensolarado.  Não será assim a nossa vida?

Após a delonga e arrastada caminhada orante, chega-se finalmente ao final da trilha. Sentados ao redor de um altar em flores, com perfume de jasmim e rosas, sons doces e suaves, acalmavam os ansiosos corações que batiam aceleradamente pelo esforço e a emoção diante da possibilidade de ver MARIA.

 Num dado momento das preces silenciosas,  um jovem rapaz uruguaio levanta e diz: Ai,  está ela! A virgem vestida em trajes longos embranquecidos, de pele escurecida – é a virgem de Guadalupe, que se apresenta aos seus filhos num aspecto de ternura, só presente nas experiências maternais. 

Os presentes com olhos espantados também tentam inutilmente e fidedignamente avistar a virgem, porém só a ele é dado este dom – da fé, da clarividência e do sentido. Os semblantes denotam uma intensa expressão de bondade e amorosidade tão pouco ou nunca visto por mim. Suavidade e leveza permeava o ambiente intensamente. Em coro rezavam a oração do PAI, em agradecimento a presença maternal e protetora da MÃE.


No retorno as suas casas, após advento conservam ainda, nos seus olhos o brilho do ritual. Eu, no pensar refletido diante a tudo que assisti me indago: Realidade ou Fantasia? Não importa! O que vale mesmo é a experiência vivida e a recordação integrada na minha tão carente alma de momentos tão ricos e belos, onde se faz presente a nossa humanidade revivida em irmandade cósmica.