Cara Amiga,
Em sua última carta dizia-me que
tinha se relacionado com um rapaz quando tinha 31 anos, que foi sua primeira
experiência amorosa e sexual, e que até hoje aos 63 anos, ainda o amava e
perguntava-me: é possível tamanha paixão transformar-se em amor e guardar por
tanto tempo tamanho vigor?
Afirmo-lhe que sim, desde que esta
relação fosse compartilhada a dois, que vocês tivessem o mesmo grau de
investimento nesse relacionamento e que juntos levassem uma vida ativa e nova,
aventurosa e interessante, que descobrissem coisas diferentes e que lutassem juntos
diante todas as dificuldades exteriores – ombro a ombro por um projeto comum.
Viveriam os obstáculos e criariam solidariedade numa ação comum, onde juntos
quereriam aquilo que interessava a cada um e a ambos. É como, elaborar novos
itinerários, pois repetir passos idênticos, experiências já provadas,
dificuldades conhecidas, já imaginadas e vividas seria totalmente destrutivo a
paixão, seria saborear um alimento sem tempero. Logo, ter novas experiências
juntos é a chave do enamoramento, uma eterna viagem de núpcias.
Sabe amiga, estar enamorada é uma
exploração possível, a pessoa pela qual nos envolvemos constitui para nós uma
modalidade com que modificamos radicalmente a nossa experiência cotidiana.
Enamorados, nos sentimos mais vivos, capazes de construir coisas novas,
fantasiosas, faz-nos entrever uma vida rica, mais alegre e fascinante, cheia de
emoções intensas, de coisas maravilhosas, de descobertas constantes e até mesmo
de riscos. Afinal Clarice Lispector em sua crônica chamada “Mude” já afirmava:
“repito por pura alegria de viver: que a salvação é pelo risco, sem o qual a
vida não vale a pena!”.
Contudo, o nosso cotidiano surge
pouco a pouco como uma renúncia a tudo isso, para transcendê-lo é necessário à
reafirmação do imaginário, da fantasia sobre a realidade vivenciada. Mas não
esqueça é uma viagem em conjunto, que requer que a iniciativa seja de ambas as
partes, pois exigem de nós o enfrentamento de duras penas, descobertas e
confrontos, numa continua reinterpretação do mundo e reexame do passado. Há
quem encare como luta, outros como poesia, ou simplesmente como a capacidade de
se maravilharem consigo mesmos, procurando sem cessar, não o que dá segurança
ou o que já se conhece, mas o desafio, a criação e a beleza. Todavia, a viagem
exterior é apenas a ocasião, o instrumento para uma longa e continua viagem
interior, assim como, a viagem ao interior é um estímulo para a viagem
exterior.
A vida, mui amiga querida, cria o
encontro, os projetos, as provas, as ocasiões. Precisamos nos mover nessa
correnteza com uma pequena canoa em meio à tempestade, embora não sejamos nós
que fazemos as ondas e nem a modificamos. Podemos atravessar o mar, com alegria
ou fadiga, ou com ambas, e chegar à margem, ou também não chegar. Quem sabe,
mais do que uma arte do amor ou do apaixonamento, seja necessário sabermos que
se trata de fazermos escolhas, cada vez mais e mais conscientes da nossa
humanidade, o que nos torna humildes e menos onipotentes ante a vida.
Beijos, saudades,
Socorro do Prado
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